terça-feira, 19 de janeiro de 2010

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   Quando os sinos da igreja tocaram, já o caixão seguia o seu caminho, transportado por quatro homens sem nome que poderíamos adivinhar como seres sem tempo, sexo ou idade. Quatro figuras cinzentas transportando aos ombros os quatro cantos de uma caixa de madeira. O céu, em segundo plano, estava de acordo com esta altura do ano. Um céu azul sem cor, pálido e distante, como a fotografia colorida de um calendário de hospital, pendurado num corredor aquecido nos anos setenta, depois da revolução dos cravos e antes da tragédia das torres gémeas. A fotografia do calendário mostra um campo cultivado, de terra seca, o mesmo céu silencioso segreda que se trata de um inverno qualquer, de um tempo perdido em que visitávamos as tias-avós por alturas do natal. Nunca entendi como se pode viver sem ser no sobressalto, como é possível viver sem uma espécie de loucura integrada no modo de pensar moderno. Há uns ramos de árvore seca contra o céu quase branco, um risco de vapor parado por algum avião que já não se vê, e uma vontade grande de gritar e partir a abóbada celeste como se fosse feita de um cristal sujo e velho. No chão, apesar de seco, vejo musgo fresco na sombra. O sol aquece onde bate, mas tudo o resto é frio, como se o sol nunca mais pudesse voltar a aquecer este mundo ou o outro.
   Pensei – Já foste embora – e contudo nós continuamos aqui, presos a esta dimensão que nos limita, a contarmo-nos histórias com o objectivo de afastar a morte. O padre faz o discurso da praxe. O caixão está aberto mas eu não acredito que esteja lá algum corpo. Quatro sírios te protegem dos diabos deste mundo. A talha dourada dos altares, os anjos que se enrolam com as trompetas, a mãe e o Cristo morto no seu colo, tudo me parece saído de um mundo inventado pelos homens. A luz sinistra que semi-ilumina esta presença é apenas reconfortada pela certeza de que um sol mínimo brilha ainda lá fora. Ouçamos o padre falar como se fosse um comboio fantasma. Meus irmãos, se não fosse a certeza que o abismo da morte nos conduz à vida eterna, se não fosse isso, a vida não teria qualquer sentido. Estas palavras soam como gemido triste. Já não se põe a questão de acreditar ou não nestas palavras, põe-se apenas a questão de saber que absurdo é este, que loucura é esta a que vamos assistindo, impotentes, relutantes, renitentes, revoltados e mudos? Pergunto-me se o padre acredita nas suas próprias palavras, naquele discurso manco e órfão, naquele seu tom monocórdico de desgraça inevitável, ou se ele próprio não se dará conta do seu erro, da sua culpa confusa em tudo aquilo em que compromete a sua alma ininteligível. Basta sermos minimamente espertos para vermos, sentirmos, que há aqui uma história muito mal contada.
   Sentimos que a única coisa com sentido é continuarmos vivos. A morte não nos diz respeito, e contudo é ela o nosso denominador comum, é ela quem nos espera no fim da linha, na paragem onde não queremos jamais chegar.

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