quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Costa Cabral

  Quem quiser viajar no tempo pode sempre dar um passeio pela rua de Costa Cabral, na cidade do Porto. Esta zona da urbe mantém-se como cenário inverosímel; congelada nos idos anos de 1970, foi trazida directamente para os nossos dias com um leve cheiro a bafio. Quem estiver interessado em saber qual era o aspecto do comércio num país comunista, como a saudosa RDA, ou mesmo uma Bulgária decrépita, pode sempre deambular por estas lojas de calçado e roupa de difícil classificação. Os manequins ainda são construídos à boa maneira antiga, e é perturbante ver uma blusa com um decote mais aberto, suspensa sobre uma estátua que podia estar num filme de terror. As montras afundam-se rapidamente na escuridão de buracos negros, e se nos arriscarmos a entrar podemos não mais conseguir sair. Tudo aqui é inquietante, e mesmo a mulher, cinquentona, passeando o seu cão fora de época sobre o passeio estreito, se torna um enigma para o transeunte inexperiente. Será puta ou avó de família da pequena burguesia, ali para os lados do Covelo?

domingo, 7 de novembro de 2010

Nina Clemens e as hiperligações

  Comecei por pesquisar com a seguinte frase -"how to remember things from your childhood", na esperança infantil de encontrar algum guru que falasse sobre métodos de regressão, meditações e coisas do género. Entrei numa página que era uma espécie de Forum sobre memórias da infância. Um tipo perguntava se alguém se lembrava de uma série que o havia impressionado. Tinha lá o link para ver, no youtube, um bocado da tal série. Eram bonecos feitos de plasticina, um parecia o Einstein, depois duas crianças que o acompanhavam, e numa tela futurista aparecia um suposto demónio, que ia explicando aos três a sua natureza. Ainda dentro do forum, havia um tipo que respondia à interrogação do outro, e lhe dizia que o filme era baseado num conto do Mark Twain. Havia outro tipo que dizia ter lido algo do Mark Twain que o impressionara muito. Outro apostava que deveria ter sido "Letters from the Earth", e lá fui ver do que se tratava. Fiquei a saber que Mark Twain se chamava Samuel Clemens, e que estes seus ensaios haviam sido publicados postumamente, por conterem visões pouco ortodoxas sobre religião, e cristianismo em particular. Li ainda que uma filha do escritor morreu afogada na banheira. A outra filha, Clara Clemens, teve uma filha, chamada Nina Clemens. Esta Nina é que me impressionou. Nasceu poucos meses após a morte do avô, e morreu sozinha, sob o efeito do álcool e das drogas, num motel de L.A.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

No reino do Papa

   Fui ver o Papa. No íntimo do meu coração, talvez esperasse ser como a outra que tocou na orla da túnica de Cristo, enquanto Ele caminhava apertado por entre a multidão, e ouviu-O perguntar - "Quem me tocou?", ao que ela respondeu - "Fui eu". Claro que a mensagem aqui é contrária à minha intenção de contacto físico com alguém. O acto de tocar levemente a túnica, no meio de toda a confusão e aperto em volta, mostra que a comunhão é feita através do coração. Os outros apertavam-No de todos os lados, mas Ele sente, precisamente, aquela que mal O tocou.
   Se eu quisesse tocar ao de leve este Papa, certamente teria de morrer primeiro, ou então, morreria no meio do processo. E o mais triste é que acabaria apenas por tocar um vidro anti-bala, fumado, onde talvez a minha mão ensaguentada, espalmada, provocasse uma espécie de asco piedoso por parte de Sua Santidade. Este é o reino do nosso mundo, aquilo que temos.
   No meio da multidão que enche a praça, mesmo ao meu lado, ouço um tipo falando ao telefone. Fala de forma gutural, num volume exagerado para a ocasião -"Tá bem, tá bem... nós tamos aqui, sim, já cá tou, vim à missa... vim ver..." e logo começam à sua volta pedindo silêncio. Um homem chega mesmo a dizer - " Oh pá, isto é uma missa! Fala mais baixo!" e o rapaz acena-lhe com um gesto que parece querer dizer que já falta pouco. O homem enerva-se. O rapaz, para onde olho agora directamente, aparenta fisionomia de algum tipo de atraso. Será que o homem não vê isso?, penso eu. E retoma a sua repreensão dizendo ao rapaz - " Oh pá, vê se te calas! Isto é uma missa!". O rapaz acaba a chamada, indiferente ao homem, e faz um resumo da mesma, quase aos berros, a uma senhora velhinha que é a sua companhia ali.
Isto tudo quer dizer o quê?
Como diz na bíblia, Quem puder compreender, que compreenda. Eu por mim, cada vez entendo menos.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Saneamento básico

   Há duas primaveras em Portugal. A primeira é aquela que vem nos livros da escola e que todos nós conhecemos, que tem passarinhos enamorados, meninas adolescentes fazendo salivar os quarentões, árvores explodindo em tons de verde translúcido, e muitas hormonas viajando ao sabor dos ventos. Depois temos a primavera típica da nossa terra, que é a dos funcionários da câmara esburacando tudo quanto é passeio e rua das nossas cidades. Aparecem já de manga curta e colete fosforescente, capacete de protecção mal encaixado na cabeça pensadora, e normalmente trincam uma erva comprida em jeito de selvagens mascando tabaco. As combinações são infindáveis, e os propósitos do trabalho também. Temos serviços de saneamento, instalação de fibra óptica pela enésima vez, condutas de gás, ramal de electricidade em reposição, e quando chegam ao fim de um troço, começam a abrir de novo o chão com picaretas ensurdecedoras, em jeito de quem sinaliza a chegada da época da destruição. Quando os passeios são do tipo calçada portuguesa, então aí temos trabalho até ao início do outono, pim, pim, clac, numa arte de encaixar cubos de pedra que se pode dizer quase milenar. Além disto, dá-lhes na gana, muitas vezes, para serrarem árvores que fazem parte do património. Eu gosto muito da Primavera à Portuguesa!

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Loucura

   Foi nas escadas que davam para a luz do dia que ouvi a sua voz. As pessoas seguiam como soldados sonâmbulos, em fila indiana, degrau a degrau até à liberdade das árvores verdes, plantadas mesmo à saída da paragem. Ela dizia - doutora, eu não consigo... não consigo, não tenho vontade de nada... não sei que fazer doutora, eu não quero nada... não consigo ir trabalhar, eu não tenho vontade de nada, oh doutora - e eu tive medo de olhar para trás, e continuei subindo as escadas, atrás de uma formiga cinzenta, de punho cerrado e ameaçador, que no seu andar geométrico, quase me batia no queixo. Subíamos as escadas. Pensei, deve ser uma mulher madura, na meia-idade, desesperada, ligando à sua psiquiatra, e pensei também que a sua médica devia ser uma boa pessoa, caso contrário nem atenderia a sua chamada. Já no passeio a sua voz alta fura a cidade, e por entre as formigas vai pedindo ajuda, indiferente a tudo e a todos diz - mas doutora, eu não consigo... tive aqueles sonhos estranhos de novo, doutora, tenho aqueles pensamentos horríveis... eu não quero mais isto doutora... Eu penso que a mulher se despiu com estas palavras. Estará ela nua? Estará de pijama? Não tenho coragem de olhar para trás, e vou andando como quem foge em silêncio, sem querer chamar a atenção de ninguém. Tenho medo que ela me grite - TU AÍ! TU QUE FOGES DE MIM, NÂO SERÁS TÃO LOUCO QUANTO EU?

domingo, 11 de abril de 2010

Sal da Vida

Out of Africa.

sábado, 10 de abril de 2010

Livro sem fim

   Isso é o que chamo de surpresa agradável. No meio de uma daquelas feirinhas de livros, que aparecem como oásis nos sítios mais improváveis, eis que encontro este livrinho perdido no meio de tantos outros, e logo me apaixono pelo seu conteúdo multidimensional inqualificável. E se digo que é inqualificável, é porque é isso mesmo que apetece dizer de um livro que não se deixa prender a categorias hierárquicas, classes absurdas, ou estantes de filosofia. O autor é como o livro, e o livro como o autor: inacabado, sem fim...

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Sombras

Quero que as sombras do mundo se vão todas foder.

domingo, 28 de março de 2010

Ansiedade Existencial

   O medo profundo deixa-nos vulneráveis. É sempre uma ameaça às fundações, ao centro da minha existência. A ansiedade primária é a experiência da ameaça iminente do não-ser... A ansiedade é o estado subjectivo do indíviduo se tornar consciente que a sua existência pode ser destruída, que ele se pode perder a si e ao seu mundo, que se pode transformar em "nada". Atinge o âmago da sua auto-estima e valor próprio.
   Com esta ameaça permanente do não-ser, podemos viver as nossas vidas em tentativa permanente de iludir a morte. Fugir da morte é também fugir da vida. Quando sentimos ansiedade, sentimos que a morte anda à espreita, que anda à nossa procura e nos vem buscar. Tememos ser sugados, sem capacidade de nos refazermos, perdidos para sempre. Sentimo-nos como uma partícula de pó vogando no imenso espaço do nada. Não temos qualquer refúgio.

(tradução livre de um texto de Paul Robb, onde estão contidos alguns pensamentos de Rollo May)

quinta-feira, 18 de março de 2010

diário anónimo

   Se um tipo se põe a pensar sobre determinadas coisas, por vezes, chega a conclusões que não imaginava serem possíveis de se tirar. Estou a falar deste blog e do seu significado. Um tipo olha para a página do blog e pensa - O que é que esta merda quer dizer? - e o pior é que não chega assim a nenhuma conclusão, digamos, brilhante ou clarividente. A verdade é que a escrita é um acto íntimo, um mergulho no negativo fotográfico que deu origem ao que somos. E a paciência para dizer o que somos nem sempre é coisa fácil de se ter.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Velhice lúdica

À medida que vamos envelhecendo o tempo acelera, e isto é uma verdade que ninguém consegue negar, acho eu. Mas que a vida de um velho se tenha de resumir ao que vejo na capa deste livro é, como diz um colega meu de trabalho - Um medo!

terça-feira, 2 de março de 2010

Ser

   Às vezes sinto uma espécie de compaixão por mim próprio, como se fosse eu o meu deus (e não será assim com todos?) e do alto do meu universo observasse a forma frágil como penso e existo. Sinto então uma cólera por ser limitado, por não poder, ou não saber, dizer tudo aquilo que queria dizer de uma só vez. Mas a própria estupidez, limitada no seu entendimento, tem a capacidade de emocionar um ser que se observa e se sabe finito. Muitas vezes penso que é daqui que nasce o sentimento religioso, desta fruição de uma incapacidade no pensar, em algo que sensibiliza pela sua própria ignorância, como se fosse possível, e é-o de facto, ter dó deste ser que pensa sem saber porque pensa. Pensar o pensamento é uma espécie de oração.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

O paradoxo da verdade

Esta frase é falsa.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

o silêncio das ideias

   O maior tesouro é aquele que ninguém sabe onde está. Existe algo de precioso e ímpar em tudo aquilo que fica por dizer. As memórias são como lagos quentes em noites de verão, onde as ervas secas molham os lábios dos amantes. Será que já vivi até aqui?

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Sentido

   Este sentimento de incapacidade absoluta para guiar a minha própria vida não me parece ser bom. Poderia virar-me para Deus, é certo que sim, mas este deus para o qual me iria virar seria exactamente um deus nascido do desespero, depois de tudo falhar eis que regresso à casa do Pai, e rezo para que o pai me receba de braços abertos e sorriso na cara. Este deus é demasiado humano, sem dúvida, mas a sua humanidade talvez seja a minha salvação divina. Se falhei no trato humano, no mundo dos homens, resta-me agora o mundo perfeito dos deuses para buscar o meu quinhão de felicidade. Não será já durante esta vida terrena, é certo, mas poderei talvez contar com um prémio depois desta ilusão do real me deixar. E o mais fascinante de toda esta história é que tudo se passa dentro do nosso pensamento. Eu decido que deus existe, eu decido que ele não existe, eu decido que vou ser religioso, eu decido que não acredito em nada. Como pode um Deus ser uma entidade infinita se nasce de uma mente finita? Esqueci-me que o homem é um ser infinito. Só isso pode explicar o que não se explica.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Escrever

   Fico contente quando escrevo. Eu não digo que fico contente com aquilo que escrevo, não, nada disso, digo apenas que me contento com a felicidade extraída de um momento durante o qual sou aquilo que vou escrevendo. E não escrever, para mim, é equivalente a um crime. Não é um crime de sangue, mas assemelha-se em tudo a um crime passional; uma espécie de traição ao espírito do ser que nos habita.

sábado, 30 de janeiro de 2010

El Corte Inglés

   Os empregados do Corte Inglês surgem sempre em grupos de três, muito direitos e sorridentes, como se fossem figurantes de um qualquer filme invisível. Tem ar e pose de comissários de bordo, e isto não é de agora, pois quando era miúdo lembro-me de ir a Vigo e aquela aparência de felicidade saciada era a mesma. Uma calma solícita de quem vai ter prazer em encontrar uma criança perdida e a devolver a uns pais distraídos. Parecem estar sempre no meio de conversas curtas e inodoras, pontuadas por leves inclinações do corpo em jeito de conclusão do parágrafo. Braços atrás das costas, passinho adelante, gargalhada com sonoridade certificada pela norma ISO 9001, e depois dispersam como andorinhas e formam novos grupos de três unidades.

Conversas com Deus#1

- Sabes Deus, estive a ler aquele teu livro enorme, a bíblia, e aquilo realmente é uma história do outro mundo.
- Gostaste? Fico muito contente com isso, porque há aí algumas pessoas que desdenham daquilo, como o teu irmão Taramagos, por exemplo, está sempre a criticar-me o livro.
- Queres dizer Saramago, não é Deus?
- Isso! Saramago! Isto só pode ser um acto falhado, engano-me sempre no nome do homem.
- Mas voltando ao teu livro, como é que se consegue escrever tão bem? É que até mete raiva, como diz o Saramago sobre o outro que escreveu Jerusálem, não há direito que um tipo tão novo escreva tão bem...
- Eu também era novito quando escrevi a bíblia. Vou confessar-te um segredo, eu tirei um curso de escrita criativa com Alá. Já leste alguma coisa dele?
- Não, por acaso não li nada.
- Mas devias, mas devias...

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

J.D.Salinger

  Morreu hoje, aos 91 anos, o escritor norte americano J.D.Salinger. A única coisa que me apraz dizer é que descanse em paz a sua alma, e agradecer-lhe a maravilha que nos deixou ficar nas páginas do seu romance Uma Agulha no Palheiro. Quem nunca leu o livro vive em pecado, mas está sempre a tempo de se arrepender e correr até à livraria mais próxima. No meu tempo era um livro da colecção Dois Mundos (Bertrand), agora mudaram-lhe o nome para À Espera no Centeio, e não sei qual é a editora. Mas leiam o livro que não se vão arrepender!

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Fluir

   O corpo já me pesa. Quando tinha vinte e poucos anos não sabia sequer que tinha um corpo, tal era a sua ligeireza e perfeita a forma pela qual se fundia ao cenário que vivíamos. Agora o corpo pesa. Sinto as pernas engrossadas pelo cansaço de cada dia; os passos parecem ter íman sobre a terra. Quando arranco numa corrida é como um navio imenso ligando as hélices dos motores profundos, ganhando energia cinética, animado de uma força bruta semi-desorganizada. Já lá vai o tempo em que de um salto voava sobre seis degraus de uma só vez, sem ter sequer consciência de tirar os pés do chão. Voava porque não pensava em voar, e além disso os músculos ainda não tinham nomes. Eram simplesmente o desenho de um corpo jovem e perfeito.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Escrita Inteligente

O meu telemóvel já reconhece as palavras foder, puta, merda, caralho, punheta, cabrão, paneleiro, cona e peido. Sinto-me orgulhoso por ele ter aprendido tão depressa. Acho que agora está mais preparado para a vida do que quando me veio parar às mãos. Nutro uma secreta esperança de que um dia, para além da escrita inteligente, ele me surpreenda com uma conversa inteligente. Se for preciso, até o mando estudar para o estrangeiro! Acho que ele sabe inglês, mas vou ver o que me diz o seu menu.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Implosão

   Compreendo perfeitamente o que sentem estes prédios. A destruição vem do interior, suga as paredes e os tectos, e com jeitinho ainda esmaga algum transeunte aluado.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

? ? ?

   Quando os sinos da igreja tocaram, já o caixão seguia o seu caminho, transportado por quatro homens sem nome que poderíamos adivinhar como seres sem tempo, sexo ou idade. Quatro figuras cinzentas transportando aos ombros os quatro cantos de uma caixa de madeira. O céu, em segundo plano, estava de acordo com esta altura do ano. Um céu azul sem cor, pálido e distante, como a fotografia colorida de um calendário de hospital, pendurado num corredor aquecido nos anos setenta, depois da revolução dos cravos e antes da tragédia das torres gémeas. A fotografia do calendário mostra um campo cultivado, de terra seca, o mesmo céu silencioso segreda que se trata de um inverno qualquer, de um tempo perdido em que visitávamos as tias-avós por alturas do natal. Nunca entendi como se pode viver sem ser no sobressalto, como é possível viver sem uma espécie de loucura integrada no modo de pensar moderno. Há uns ramos de árvore seca contra o céu quase branco, um risco de vapor parado por algum avião que já não se vê, e uma vontade grande de gritar e partir a abóbada celeste como se fosse feita de um cristal sujo e velho. No chão, apesar de seco, vejo musgo fresco na sombra. O sol aquece onde bate, mas tudo o resto é frio, como se o sol nunca mais pudesse voltar a aquecer este mundo ou o outro.
   Pensei – Já foste embora – e contudo nós continuamos aqui, presos a esta dimensão que nos limita, a contarmo-nos histórias com o objectivo de afastar a morte. O padre faz o discurso da praxe. O caixão está aberto mas eu não acredito que esteja lá algum corpo. Quatro sírios te protegem dos diabos deste mundo. A talha dourada dos altares, os anjos que se enrolam com as trompetas, a mãe e o Cristo morto no seu colo, tudo me parece saído de um mundo inventado pelos homens. A luz sinistra que semi-ilumina esta presença é apenas reconfortada pela certeza de que um sol mínimo brilha ainda lá fora. Ouçamos o padre falar como se fosse um comboio fantasma. Meus irmãos, se não fosse a certeza que o abismo da morte nos conduz à vida eterna, se não fosse isso, a vida não teria qualquer sentido. Estas palavras soam como gemido triste. Já não se põe a questão de acreditar ou não nestas palavras, põe-se apenas a questão de saber que absurdo é este, que loucura é esta a que vamos assistindo, impotentes, relutantes, renitentes, revoltados e mudos? Pergunto-me se o padre acredita nas suas próprias palavras, naquele discurso manco e órfão, naquele seu tom monocórdico de desgraça inevitável, ou se ele próprio não se dará conta do seu erro, da sua culpa confusa em tudo aquilo em que compromete a sua alma ininteligível. Basta sermos minimamente espertos para vermos, sentirmos, que há aqui uma história muito mal contada.
   Sentimos que a única coisa com sentido é continuarmos vivos. A morte não nos diz respeito, e contudo é ela o nosso denominador comum, é ela quem nos espera no fim da linha, na paragem onde não queremos jamais chegar.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Notas

  Não sei se devo, ou não, falar do que penso. Hoje acordei com três pensamentos brilhantes, pelo menos assim me pareceram enquanto fazia a barba e abria a água para um chuveiro matinal. O engraçado dos pensamentos é que são apenas isso: pensamentos. Devido à sua consistência etérea devemos agarrá-los rapidamente por meio de algum dispositivo que os consiga materializar.
Sendo assim, ia eu a caminho do trabalho, e quase me arrisquei a escrevê-los (aos pensamentos ditos brilhantes) num bocado de papel que trazia no bolso. Tinha sorte, pensei eu, pois havia uma caneta Bic preta num dos bolsos do meu casaco de couro. Estavam ao meu lado duas raparigas, e isso foi o suficiente, confesso-o agora, para inibir a minha coragem de escritor. Acabei por não escrever coisa alguma, espreitando apenas o bocado de papel, que para minha surpresa continha já meia dúzia, ou mais, destes pensamentos que por vezes considero brilhantes. Senti uma certa vergonha em exibir aquele papelito rabiscado em frente àquelas meninas bonitas. Era uma espécie de atestado de senilidade precoce, eu ali segurando um pedaço de papel com anotações crípticas, à maneira dos velhotes que coleccionam recortes de jornal, ou tomam nota de coisas absurdas que lhes parecem extremamente importantes. Assim sendo, os pensamentos brilhantes ficaram na gaveta, isto é, no sítio onde nasceram, pois os outros pensamentos (vergonha e desconforto da idade) levaram a melhor sobre o meu corpo. Fiz de conta que consultava uma nota importante, franzi o sobrolho de forma semi-inteligente, e guardei apressadamente o papel, sentindo nesse momento o corpo da caneta Bic na palma da mão, e era como se tudo em mim fosse uma traição.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Credo

   Muitas vezes me parece que a relutância, a negação da fé divina, se assemelha a essa figura da tourada portuguesa, o forcado, que num misto insuflado de pavor da morte e orgulho de macho latino grita - " Olé touro! Olé! " gingando o corpo numa pose de atrevimento, braços em V apoiados na cintura, desenhando passos mecânicos que se aproximam da besta, como na medição feita por um compasso sobre a folha, um passo aqui, depois ali, até que o monstro se decida a espetar-lhe os cornos, rasgando-lhe o ventre, fazendo-o esguichar de sangue e cuspo, atirando-o para longe como quando o cão raivoso abocanha um bocado de carne e a atira para o lado sem consciência do que faz. A nossa relação com Deus é muito esta. E acho que isto diz muito sobre nós e sobre Deus.

Jesus em 2001

   Quando Jesus apareceu, no ano das torres gémeas, vagabundeando por entre a 5ª Avenida e o Central Park, houve alguns que se aproximaram dele, e então, em nítida provocação perguntaram-lhe - " Diz-nos Senhor, se és mesmo o Salvador, diz-nos se devemos reciclar o plástico, as pilhas e os vidros? Está escrito na Lei que tudo morre, mas o imperador quer reciclagem, que fazemos então? Diz-nos Senhor! " E com isto contavam pô-Lo numa situação difícil, pois se por um lado o imperador mandava reciclar, por outro, a Lei dizia que tudo tinha um princípio e um fim nesta existência. Jesus apenas lhes disse - " Dai a Kyoto o que é de Kyoto, e a Istambul o que é de Istambul! Fazei assim e estareis a proceder conforme a vontade do Pai Altíssimo!"
Depois de ouvirem tais palavras muitos comentavam - "Não há dúvida que é Ele o Salvador, pois nunca antes alguém falou com tal sabedoria..."

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Escriturário

   Quando comecei a escrever aqui tive de me confrontar com o significado disto. Escrever para quê e para quem? É um exercício interessante quando nos pomos a pensar sobre estas coisas básicas, porque se pensarmos bem, o acto da escrita assemelha-se muito à construção daquelas bonecas russas, que saem umas do interior das outras, numa espécie de sucessão infinita. Porque escrevo isto que acabo de escrever? A escrita também pode ser usada como meio de interpretação do que somos, e acho que é assim que eu a vejo. Sou aquele que escreve aqui e se pergunta a si mesmo porque o faz. E a verdade é que neste momento não tenho qualquer resposta. Mas digo isto como poderia dizer outra coisa qualquer. E isso, por vezes, agrada-me, outras não.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Blog Template

   Nunca pensei que fosse tão difícil escolher um Template para um blog. Isto reflecte bem, acho eu, o meu actual estado de indecisão face ao mundo e às suas coisas. Aquela história do feio por fora, bonito por dentro, é boa, mas aqui parece que não funciona muito bem. Queria dar aqui um jeito à casa a ver se arejava as ideias, e finalmente me conseguia concentrar naquilo que de facto interessa: escrever.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Ternura dos 40

   A partir de uma certa idade já não interessa muito o que vai acontecer. Os sonhos são direccionados para os mais jovens, aqueles que estão a iniciar-se na arte do sonho. Que vai fazer o menino? Quer ser escritor? Vai tocar bateria numa banda? Está a pensar em fazer um curso em Inglaterra... talvez vá tirar um mestrado em filosofia do cinema.... escreve crónicas enquanto viaja... o meu filho está à espera que lhe mandem uma resposta de Chicago, pode ser que consiga entrar na escola de fotografia Lawrence Rodger... Mas quando temos quarenta, esperam que os nossos sonhos estejam bem enterrados e pedem-nos para termos juízo.


   Chegados à meia-idade temos de aguentar o nosso engano, o erro em que nos metemos. Podem dizer-nos que temos de nos conciliar com a vida, procurar um equílibrio no que fazemos, ver o sol e a praia, ler uns livros, mas o fruto apetecido, a maçã mais vermelha não é para quem cometeu um erro tão imenso quanto o nosso. Temos o direito à tristeza, ninguém o nega, mas a pouco mais do que isso. Se quisermos até podemos tomar alguns fármacos, mas temos de ter calma, já não temos vinte anos, não podemos ser ridículos, temos de crescer. Temos o direito à mudança se essa mudança não colidir com nada do que está instituído. As mudanças assim mais valera que não existissem; é uma espécie de mudar tudo para que tudo fique na mesma.


   Nada pode mudar assim! À medida que o tempo passa e nos aproximamos do fim, as medidas de mudança têm forçosamente que ser maiores, mais radicais, pois um leve desvio de rota não mudará já nada no destino final. Se queremos mudar temos de mudar de forma grandiosa, trocando o tudo por nada, ou vice-versa. O resto são paliativos, e gera-se à nossa volta uma espécie de murmúrio de vergonha. Já devíamos ter juízo, mas no entanto continuamos a sonhar, persistimos em algo que já nos mostraram que não é para nós. É um silêncio incómodo que nos vestem sobre a pele, e não raras vezes sentimos como se estivêssemos a velar um morto desconhecido. São raras as pessoas que fazem o que querem, como querem, e mais raras são aquelas que sabem o que querem fazer.


   Isto surge mais como uma queixa, bem sei, mas a verdade é que não consigo livrar-me destes pensamentos inoportunos. Quando estamos lançados num determinado tipo de vida, ainda que nos desgoste, somos impelidos a prosseguir nessa mesma vida, sorrindo e cantando mesmo que tudo pareça estar errado. Como se pode mudar quando não se sabe quem somos? E mesmo sabendo quem somos como se pode operar a mudança? Existe um certo encantamento numa vida falhada que não é fácil definir. Podia ter sido maravilhoso, podia ter acontecido assim, mas no entanto a vida, as coisas da vida não permitiram que a flor desse fruto. Refugiados procuram asilo no mundo do sonho, porque este mundo não é para eles, não se conseguem encaixar, produzir, correr e amar como seria esperado que o fizessem.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Cão


Muitas vezes penso que sou como um cão, que de tão contente se encontrar, lhe é difícil encontrar ocupação. Estou certo que todos já viram cães como este, saltitantes, de estatura média, loucos na saúde, e saudáveis na sua loucura. Correm desvairados numa direcção para, de repente, estancarem num pedaço de relva, como se todo o mundo fosse um enorme ponto de interrogação, e depois retomam a corrida furiosa, sem destino aparente ou real. São capazes de passar longos minutos tentando trincar a sua própria cauda, enovelando-se numa espécie de tontura obsessiva, parando apenas para dar um salto bem alto, como quem acabou de apanhar um choque eléctrico, e depois seguem na sua obsessão, espreitando-nos de soslaio com os seus olhos doces de ternura.

domingo, 10 de janeiro de 2010

AVC - alerta amarelo

   Agora temos a época oficial dos AVCs para acompanhar a quadra natalícia. Comecei a estranhar quando ouvi na rádio os spots comerciais - " Sabia que os meses de Dezembro e Janeiro são aqueles em que ocorre o maior número de AVCs? ". Eu por acaso já tinha assim uma ideia difusa de que seriam esses os meses da matança, mas é muito desagradável ir um tipo a conduzir, do Porto a Lisboa, sempre a ouvir os sintomas -" boca ao lado, dificuldade em articular as palavras...", e pensei logo que deve haver aí muito bom tipo com AVC que nem sabe que está a ter um! Mas isto ajuda muito, não há dúvida nenhuma, pela minha parte espreitei no espelho a ver como estava a minha boca, e perguntei à minha companheira se se notava muito o meu falar entaramelado. Ela disse que eu era sempre assim e fiquei mais tranquilo. O pior é que estamos em Janeiro e um gajo aflige-se.
Agora é só esperar por Junho para abrir a época dos afogamentos. Adoro este país!

O trabalho

Estava hoje a pensar sobre aqueles mails que nos mandam, maioritariamente inúteis, pedindo sangue do tipo A, rh qualquer coisa, para a menina que está no hospital e não irá sobreviver se não houver uma qualquer alma caridosa disponível para a dádiva. Pergunto eu: porque não se pode aplicar este mesmo conceito para um desempregado? Nos milhares de mails que se geram por este processo em rede, deveria existir, quase de certeza, algum destinatário capaz de arranjar um trabalho para um tipo necessitado. A resposta, para mim, é simples. Ninguém quer trabalhar!

sábado, 9 de janeiro de 2010

Barbearia Garret

Existe, no acto de cortar o cabelo, algo de transcendente, e se esse acto for praticado numa barbearia clássica do Porto, saímos de lá como quem acaba de presenciar uma ressureição: a nossa própria ressureição. Se for inverno frio e estiver sol lá fora, o efeito de renascimento é ainda maior. Não consigo explicar este fenómeno. O único que se assemelha em estado de espírito é a ida ao dentista, mas é nitidamente inferior a este. Aquele consolo final de ter a boca arranjada, limpa e desinfectada, parece que se espalha pelo corpo prometendo uma vida nova. No caso de optarmos por um corte rente, feito com a máquina, a alegria à saída faz lembrar a brancura dos treze anos, quando acabados de sair do confessionário corríamos para o sol da praceta, com a alma mais leve e os pecados expiados.
O Sr. Branco faz jus ao nome, com os seus cabelos ondulados penteados para trás. As conversas são feitas em forma de ladainha, e é uma alegria ouvi-lo dizer -" Então o paizinho como está?", ou então - "Deixe-me só tratar deste amigo primeiro, que é rápido, é só aparar o bigode..." e depois metendo conversa com um miúdo irrequieto que lá foi com o avô - "Oh rapaz, queres um copo de água?"
Na rádio temos os fados clássicos, o calendário religioso por cima do espelho, e uma série de objectos que já deviam estar num museu, mas que graças a Deus continuam por ali espalhados: laca, pentes, navalhas, borrifador, secador e outras bugigangas igualmente interessantes.
Só troco esta barbearia por aquelas casas modernas de centro comercial, indústrias assépticas do penteado, por haver lá meninas que nos dão massagens libidinosas involuntárias na cabeça enquanto nos lavam o cabelo, e que durante o corte, num jogo de espelhos eróticos, nos deixam espreitar os bicos das mamas leitosas pela bata branca que trazem sobre o corpo nu. É só esperar pelo ângulo certo, no momento certo, e zás. Bingo! Entretém muito.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Mar liso

Aconteceu hoje à noite quando eu andava a dar a minha volta a pé junto ao mar. Vi aquele murinho baixo que ladeia toda a praia, onde se sentam os namorados; normalmente elas de pernas abertas enganchadas sobre eles, como se o abraço fosse também dado com as pernas. Sentam-se assim cheios de amor e tesão e o mundo à volta deixa de existir. E lembrei-me de quando eu era assim. O mar parecia um lago preto onde algumas luzes pontilhavam o porto de Leixões. Às vezes havia um navio ao largo e imaginava como seria estar a bordo olhando a costa com os seus prédios e os seus carros serpenteando avenidas. Mas hoje é inverno e contudo lembrei o verão. Aqueles finais de dia, em que exausto e louco percorria a marginal de patins, assistindo ao entardecer numa mudez que quase doía. Havia aquele momento de céu rosado e violeta, prestes a explodir, e havia o meu movimento rápido sobre o chão liso; as árvores passavam como sombras, palmeiras baixas que me obrigavam a desvios rápidos no meio do ar morno do fim. O cheiro que vinha da pizzeria, doce e levemente enjoativo, depois o cheiro do mar, e de novo o cheiro do algodão doce acompanhado por balões coloridos. Nessa altura já o néon imperava e eu exibia a minha juventude no largo do Molhe, rodopiava em circunferências cada vez mais apertadas, ganhando velocidade, inclinando-me para dentro de modo a contrariar a força centrífuga. Às vezes quase raspava no chão com a perna de dentro, e tocava levemente no chão com a mão, como se fosse água.
Lembrei-me disto quando vi o mar quieto hoje. Um lago preto pacífico onde as almas poderiam adormecer. Eram noites quentes em que eu me sentava num banco de jardim, daqueles vermelhos e antigos, e ficava assim a ouvir a minha respiração e a olhar o que via à minha frente: mar, árvores, prédios, luzes, cães com donos e sem donos, gelados no chão, bicicletas e amor. Ah! mas aquele mar feito lago, esse mar nunca mais será meu!

domingo, 3 de janeiro de 2010

Frase do dia

A beleza é efémera, mas enquanto dura é eterna.

Macacos somos nós


Há quem defenda que as diferenças, entre nós e os outros animais, sejam mais quantitativas do que qualitativas. A essência da nossa humanidade parte do princípio de que somos uma espécie à parte, uns deuses caídos no meio dos outros animais, e assim sendo falamos da alma e da auto-consciência de forma intermutável, como se no ser humano se tivesse registado um salto quântico inexplicável, salto esse que definitivamente nos atirou para fora da órbita do jardim zoológico que habita o nosso planeta.
Torna-se então preocupante quando descobrimos, ou melhor, nos fazem descobrir que há uma série de coisas que os outros animais têm e que não convinha que tivessem para descargo das nossas consciências intranquilas. Estudos feitos com macacos revelaram níveis de auto-consciência notáveis. Quando postos em frente a espelhos de corpo inteiro os macacos aproveitavam para espreitar partes do seu corpo que de outra forma lhes estariam vedadas. A prova dos nove foi feita quando os anestesiaram, e os pintaram com manchas de tinta vermelha em diferentes partes dos seus corpos. Os macacos acordaram e olhando-se ao espelho, estranharam as manchas, e foram com as mãos directamente sobre os pontos nos seus próprios corpos onde a tinta vermelha estava espalhada. Poderiam ter ido sobre o espelho, poderiam ter tentado tocar nas manchas que viam nos macacos que estavam no espelho, contudo tocaram em si próprios.
É caso para dizer: é o fim da macacada!